O Ônibus do Flamengo

Cidade do Rio de Janeiro. Domingo. 30ºC. Sol. Zona sul. Uma combinação assaz agradável para qualquer morador em busca de lazer ou um turista à procura de um canto na praia para descontração. Para mim, era hora de voltar para casa após um cansativo e tumultuado turno em uma casa noturna. Trabalhar atendendo as pessoas durante a noite e madrugada requer profundas mudanças na rotina, o que modifica a perspectiva em que vejo a cidade. Enquanto ela dorme, eu trabalho e vice-versa.

Ao ligar o alarme e trancar a porta de acesso, a rotina me ajudara. Meus ouvidos foram capazes de captar o ruído do motor daquele mesmo ônibus que sempre pego depois do expediente dominical. Em clara demonstração de agilidade e desenvoltura corporal, fui capaz de chegar até a parada do ônibus ainda com um sorriso no rosto. Era domingo, a casa noturna ficaria fechada até terça e eu não tinha compromisso algum para os próximos dias. Paz!

Entrando no coletivo, deparei-me com o motorista Zé Paulo, velho conhecido. Há meses repetimos a mesma rotina: enquanto ele faz a primeira viagem do dia, eu sigo para casa depois do meu turno. Não éramos amigos, mas de tanto se ver exatamente naquele mesmo horário, criamos uma espécie de prosa espontânea ao longo do tempo. Os assuntos eram os mais diversos, desde o aumento da gasolina até quais cidades na Bahia são banhadas pelo São Francisco.

Zé Paulo era uma pessoa muito verbosa, mas não parava de falar um segundo. Eu quase nunca conseguia terminar uma sentença sem ser auto-completado por ele, o qual já remendava o assunto em outra temática casual. Apesar disto, era um momento engraçado. Eu me divertia com estas curtas viagens até minha casa.

Naquele domingo em especial eu não me atentara ao noticiário nem sabia o que se passava na cidade, era apenas mais um dia comum. Durante a viagem, Zé Paulo, que articulava sobre a demarcação de reserva ambiental na cidade de Caxias, calou-se de forma repentina. Aquilo não era normal, fugia do enredo de toda viagem de todo domingo. Num primeiro momento pensei que se tratava de algo grave, estaria o motorista passando mal? Atentei-me ao sujeito que apresentava olhar afiado, severo e concentrado no retrovisor direito. Suspeitando nova razão para o silêncio do Zé Paulo, contornei minha cabeça lentamente para a direita com o intuito de identificar tamanha causa daquele mistério. Nada vi de especial: carros comuns, ônibus comuns, motos às centenas. Desisto. Perguntei com curiosidade: “Zé, o que está acontecendo?” e a resposta foi seca e direta: “O Ônibus do Flamengo”.

Até aquele momento eu não sabia qual era o fervor e devoção que Zé Paulo dava ao Flamengo. Sabia que era torcedor do time, mas nunca ouvi nada mais do que críticas eventuais e breve resumo do jogo do dia anterior. Infelizmente iria descobrir naquele instante que o motorista era um torcedor fanático do Flamengo. Quando digo “fanático” gostaria de dizer na verdade “perturbado”. Zé Paulo incarnou naquele momento o torcedor-chefe do time, transmutando de motorista casual para escolta público-privada do ônibus do Flamengo até sabe-se lá onde. Coloquei as mãos no rosto e já sabia que não iria chegar cedo em casa naquele dia.

A descoberta do nível de fanatismo de Zé Paulo pelo Flamengo ocorreu por etapas, sendo o silêncio a primeira delas. Ao perceber que o ônibus do Flamengo se aproximava pela pista à direita, Zé Paulo mudou de cor: ganhara uma tonalidade vermelha, como se os batimentos cardíacos tivessem triplicado. A buzina, antes utilizada para chamar a atenção de outros veículos e pedestres desavisados, tornara-se instrumento de aclamação ao outro veículo. Os gritos ensandecidos de apoio ao time rubro negro começavam a gerar preocupação nos outros 2 ou 3 passageiros que estavam mais ao fundo do veículo. Pensei em formas de intervir e evitar um possível acidente, já que Zé Paulo não olhava mais para frente e tentava acompanhar a mesma velocidade que o ônibus do Flamengo.

Após mais alguns segundos de pura tensão, o ônibus do Flamengo tomou uma saída da avenida e Zé Paulo, talvez por desatenção ou por não ser tão maluco assim, continuou a seguir em frente no percurso. A transmutação daquele torcedor foi revertida instantaneamente. O motorista Zé Paulo reapareceu naquele momento, limpando o suor da testa com o braço e se recompondo no assento do motorista. Silêncio.

Instantes depois era o meu ponto de parada. Ao descer, já me despedindo como sempre o fiz, Zé Paulo lança a pergunta como se nada houvesse acontecido: “Vai no jogo hoje? Final da Copa do Brasil”; respondi: “Hoje não... eu preciso dormir”. Com um corriqueiro “tá bom”, fechou a porta do coletivo e seguiu viagem tranquilamente. Desde então, por razões claras, comecei a me interessar pelo trajeto dos meios de transporte do Flamengo ao voltar do trabalho. Isto talvez possa me salvar a pele um dia.